Os furacões Helene e Milton, em outubro, causaram prejuízos de US$ 30 bilhões aos EUA. Tempestades excepcionalmente fortes inundaram o Paquistão em setembro e provocaram danos de US$ 30 bilhões. Estas são as perdas econômicas de apenas dois eventos climáticos extremos que aconteceram recentemente no mundo. “Os custos econômicos da inação são dramaticamente mais altos do que o que mobilizaríamos ao investir nos compromissos globais de financiamento de energia renovável”, compara Achim Steiner, subsecretário geral das Nações Unidas e administrador geral do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Pnud.
Ao analisar o impacto da vitória de Donald Trump à presidência dos EUA e de outros líderes populistas eleitos na Europa e em outras regiões, e que negam a crise do clima, Steiner lembra que se “o populismo vive de falsas narrativas”, é preciso reconhecer que, “ao acelerar uma resposta climática, há custos e fatos disruptivos”. Steiner falou ao Valor na COP 29, em Baku. A seguir, trechos da entrevista:
Considerando o histórico em que um governo Trump tirou os EUA do Acordo de Paris e os sinais enviados durante a campanha, as decisões que esse governo planeja tomar já estão tendo um impacto significativo nas discussões em Baku.
Acho que há duas maneiras de analisarmos as possíveis consequências de um futuro governo dos EUA sair do Acordo de Paris. Em primeiro lugar, o impacto nos EUA. Para muitos países, é fundamental que um dos maiores emissores do mundo faça parte do esforço para reduzir as emissões e avançar em direção a uma economia energética pós-combustível fóssil. Mas os sinais que estão sendo enviados por aqueles que estão falando em nome da nova administração sinalizam o contrário.
O que acontece nos EUA? A Lei de Redução da Inflação (IRA) e os investimentos que desencadeou serão revertidos? Muitos desses investimentos já estão acontecendo. A questão será: até que ponto consumidores e empresas dos EUA se beneficiam ou sofrem com uma economia baseada em combustíveis fósseis em oposição a um futuro de emissões líquidas zero? Dados Agência Internacional de Energia (AIE) mostram que o mundo caminha para uma economia de energia renovável. Prevê que dos US$ 3 trilhões em investimentos em infraestrutura de energia em 2024, US$ 2 trilhões serão em renováveis. China, Europa e América Latina caminham para ter 50% a 60% de eletricidade produzida por fontes renováveis. Por isso, para muitas empresas e setores americanos, esse pode se tornar um cenário de risco.
E fora dos EUA? O outro ponto é o impacto na ação climática internacional. O que vimos após a primeira eleição de Trump em 2016 foi a saída dos EUA do Acordo de Paris, que não foi seguido por nenhum outro país e o resto do mundo avançou com o Acordo. Mas 2024 é um momento diferente. O mundo está mais dividido e estressado. Ao mesmo tempo, os impactos da mudança climática são muito mais dramáticos: Valência, Porto Alegre, Califórnia, Canadá, África Oriental e sul da África. Ninguém tem bola de cristal, mas sou cauteloso em pensar que o mundo seguirá em frente como se a eleição nos EUA não tivesse acontecido. Em Baku já estamos sentindo os países mais cautelosos, os compromissos são mais condicionais. Os investimentos de capital privado estão se retraindo. Há muita incerteza, o que é o oposto do que precisamos para acelerar a ação e aumentar a ambição.
Nos últimos anos vimos taxas de crescimento exponencial em energia renovável, uma quase explosão da mobilidade elétrica no mercado global. Isso demonstra que os países são capazes de chegar a 70%, 80%, 90% de eletricidade renovável em suas redes em questão de anos. É possível se o mundo agir em uníssono com níveis de ambição mais altos e mais financiamento.
Agora, há os que estão olhando para um cenário em que os EUA revertem todos os compromissos assumidos sob a IRA e outras medidas. Se isso acontecer, uma previsão é que os EUA adicionarão 4 bilhões de toneladas de emissões até 2030, o que equivale ao total de emissões de 140 pequenos países. Seria como se algo equivalente às emissões da Europa e do Japão fossem adicionadas em vez de retiradas da atmosfera. Isso seria um grande retrocesso para a ação climática global. São projeções. Mas que nos dão uma ideia de magnitude. O que os EUA fazem ou deixam de fazer é importante.
A Europa se comprometeu a reduzir as emissões em 90% até 2040 e isso é lei. A China é um grande investidor, e não só em energia renovável onde é líder mundial. A Índia tem um grande programa de investimento: já construiu infraestrutura no setor de geração de eletricidade de cerca de 200 GW de fontes renováveis e planeja adicionar mais 350 GW de capacidade até 2030. Em 2009, havia menos de 500 veículos elétricos nas estradas da China e em 2023 eram mais de 8 milhões. Este ano, um em cada dois veículos vendidos na China será elétrico ou híbrido. Isso é extraordinário.
Estamos falando de 3 bilhões de pessoas nesses dois países que estão migrando para uma economia de energia e mobilidade verde em velocidade mais rápida do que jamais vimos na Europa ou nos EUA. Agora são as economias emergentes que estão conduzindo a transição para uma economia verde do século 21 em suas indústrias, geração de energia e empregos.
Estamos vendo polarização e radicalização. Fico perplexo com o fato de que um espectro da frente política considere a mudança climática como algo que não é de interesse nacional. Veja o desenvolvimento irônico após a invasão da Ucrânia pela Rússia: foi nesse momento que o conceito de segurança e autonomia energética se tornou o grande impulsionador do aumento maciço dos investimentos em infraestrutura renovável.
O populismo vive de falsas narrativas. Mas temos de reconhecer que, ao acelerar uma resposta climática, há custos e fatos disruptivos. Quando uma classe média se sente capacitada para conduzir essas decisões sem ser sensível às partes mais pobres da sociedade, rurais ou urbanas que são muito dependentes, por exemplo, da mineração de carvão ou da produção de petróleo e gás, se não incluirmos essa noção de transição justa de forma mais explícita, começaremos a alienar um número significativo de pessoas. E elas se tornam muito receptivas a uma narrativa política que não oferece uma solução, mas um inimigo.
Mas também é algo que podemos corrigir rapidamente. O público, no final das contas, reconhecerá que é uma narrativa falsa dizer que agir sobre as mudanças climáticas investindo em energia limpa é agir contra os interesses das pessoas. Começando pelo impacto da poluição e da saúde até a ameaça dos eventos climáticos extremos.
É um momento difícil do ponto de vista econômico global e de pressão fiscal particularmente intensa. Muitos países, mesmo os mais ricos, ainda estão se recuperando da pandemia. Os níveis de endividamento aumentaram, o apoio público aos gastos públicos e ao aumento de impostos não é muito forte. Muitos dos países da OCDE, os países industrializados ou as economias do G20 estão lutando com realidades políticas internas.
Mas as nações do G20 respondem por 80% da economia mundial e por 77% das emissões. Em um mundo em que somos capazes de gastar US$ 2,4 trilhões em defesa, como em 2023, é difícil argumentar que não podemos investir mais de US$ 100 bilhões ou US$ 200 bilhões para enfrentar a maior ameaça à humanidade no século 21, que é a mudança climática.
Dois furacões no mês passado nos EUA causaram um prejuízo de US$ 30 bilhões. As inundações no Paquistão causaram danos de US$ 30 bilhões. Os custos econômicos da inação são dramaticamente mais altos do que o que mobilizaríamos ao investir nos compromissos globais de financiamento de energia. Baku será uma batalha árdua para se chegar a um compromisso confiável. Mas deve demonstrar o reconhecimento e a disposição dos países em buscar uma meta financeira ambiciosa porque, sem isso, estamos minando a capacidade do mundo de aumentar os níveis de ambição em cortes de emissões.
O Brasil pode dizer genuinamente que produz grande parte de sua eletricidade com baixo carbono. Mas também vive a realidade de estar expandindo sua produção de petróleo e gás e ainda luta para administrar o impacto do desmatamento ilegal na Amazônia - embora tenha demonstrado um compromisso muito forte para enfrentar esse desafio.
O Brasil tem grande credibilidade para hospedar a COP 30. E a COP 30 é um momento crítico no ciclo do Acordo de Paris porque é o momento em que, após 10 anos, os países terão de apresentar suas NDCs (Contribuições Nacionais Determinadas) e suas estratégias climáticas, em que um nível mais elevado de ambição se torna fundamental para podermos olhar para o futuro com um grau de otimismo de que ainda podemos ficar dentro de um cenário de 1,5°C.
E isso é importante porque o Brasil é um líder clássico do G77. Tem credibilidade para reunir muitos dos países em desenvolvimento em torno de uma agenda mais orientada para o futuro quando se trata de ações sobre mudanças climáticas. Ninguém pode prever onde o mundo estará em novembro, quando nos encontrarmos em Belém. Mas o Brasil, aos olhos de muitos, pode se tornar um guardião não só da Convenção de Clima da Rio 92, mas também, em 2025, do futuro do Acordo de Paris como uma plataforma na qual mais de 190 nações podem trabalhar juntas para descarbonizar a economia global. É uma responsabilidade enorme.
*A jornalista viajou à COP 29 a convite do Instituto Clima e Sociedade (iCS)